1 INTRODUÇÃO: FILMES E COSMOVISÃO
Costuma-se perceber com relativa facilidade os esquemas conceituais e sistemas de crenças/valores de determinados filósofos. Tratados filosóficos parecem advogar, de maneira mais direta e articulada, as visões de mundo que apresentam. Possivelmente pelo contraste entre a clareza apresentada em obras desse porte – cujo objetivo é a apresentação direta e sistemática de determinada cosmovisão – e as obras artísticas, há quem considere estas últimas neutras do ponto de vista filosófico, exibindo apenas aspirações do espírito humano na busca pelo belo. O observador mais atento, porém, perceberá que mesmo as acepções sobre o "belo”estão situadas dentro de um contexto filosófico. O belo em determinadas expressões artísticas é contraposto à noção de beleza em outras. Isto torna evidente um marco referencial que define as obras de arte: elas se percebem inseridas em uma tradição – articulada ou não – de enxergar o mundo. Homens como Francis Schaeffer (2003, p.142) reconheceram a importância das artes na tradução e apresentação de cosmovisões ao povo. Segundo ele (SCHAEFFER, 2002, p.25), o caminho da disseminação de idéias tem início na filosofia, passando pelas artes, e finalmente alcançando a teologia[1]. A perspectiva da tradição na qual Schaeffer se insere, observa as artes como expressões culturais e veículos de idéias – catalisadores para que os sistemas filosóficos sejam entendidos e apreendidos pelo homem médio. Exemplo disso está no cinema. Analisando obras cinematográficas da década de 1960, Schaeffer (2003, p.142-3) reconhece a filosofia ali presente. Especialmente nos anos 60, as maiores declarações filosóficas às quais se davam ouvidos foram veiculadas por filmes. Filmes filosóficos como estes atingiam muito mais pessoas do que os escritos filosóficos ou até a pintura e literatura. Entre estes filmes podemos citar Ano passado em Marienbad (1961) de Alain Resnais,Tystnadem (1963) de Ingmar Bergman, Julieta dos Espíritos (1965) de Frederico Fellini, Blow-Up – depois daquele beijo (1966) de Michelangelo Antonioni, A Bela da Tarde (1967) de Luis Buñuel e A Hora do Lobo (1967) de Ingmar Bergman. Todos eles mostravam de maneira figurada (e de modo bastante intenso) como é ver o homem como máquina e também o que é tentar viver no campo do irracional. Nele, o homem é deixado sem categorias. Ele não tem como distinguir entre o certo e o errado, ou até entre o que é objetivamente verdadeiro como algo oposto à ilusão ou fantasia.[2] Percebe-se, deste exemplo, que as obras artísticas – e o cinema em questão – não apenas não são neutras, no sentido de estarem destituídas de pressuposições filosóficas, como são mais eficazes em divulgar tais cosmovisões para as massas, sem a linguagem técnica e pouco acessível dos tratados filosóficos. Schaeffer possivelmente faria a mesma análise na contemporaneidade: dentre as expressões artísticas, a música e o cinema parecem ter maior alcance, em contraposição à literatura, pintura, poesia, escultura e dança, por vezes classificadas como “artes elitizadas”. O roteirista de Hollywood, Brian Godawa (2004, p.15) concorda com Schaeffer, e se contrapõe às afirmações que buscam classificar os filmes como “apenas histórias para entreter". […] nada poderia estar mais próximo de uma meia verdade. Embora seja verdade que a história é o alicerce de um filme, um exame da arte e da estrutura da narrativa mostra que o poder de atração dos filmes não é simplesmente que eles são “boas histórias” de uma maneira indefinível, mas que essas histórias falam a respeito de algo. Elas narram os eventos em torno dos personagens, que vencem obstáculos para alcançar algum objetivo e, no processo, são confrontados com a necessidade pessoal de mudança.[...] Na perspectiva de Godawa (2004, p.15), os filmes caminham no sentido de buscar a solução para os conflitos apresentados na narrativa. Esse trilhar rumo à resolução dos problemas apresentados é considerado a salvação proposta pelo autor, ou, na linguagem de Godawa(2004, p.15), a 'redenção'. Em resumo, a narrativa de histórias nos filmes resume-se à redenção, isto é, à recuperação de algo perdido ou obtenção de algo necessário. […] Os filmes podem ser basicamente histórias, mas essas histórias são no final, no fundo, acima de tudo e quase semprea respeito da redenção.[3] Com esta análise e sua devida ressalva, o autor em referência possibilita uma percepção dos filmes que busque compreender a cosmovisão apresentada a partir das estruturas redentivas propostas pelo autor. Nem todos os filmes terão uma proposta de redenção, como a ressalva 'quase sempre' na fala de Godawa deixa transparecer. Contudo, mesmo a falta de uma proposta de redenção demonstra uma perspectiva a respeito dela. A compreensão possibilitada através do instrumental de Godawa se encaixa perfeitamente com a tradição reformacional[4], que tem como grande expoente o jurista e filósofo holandês, Herman Dooyeweerd. A adequação entre essas linhas se dá exatamente no aspecto da redenção. Segundo a perspectiva neocalvinista, o motivo-base adequado para se analisar a realidade é o “Criação-Queda-Redenção”, que se contrapõe aos motivos-base anteriores: Forma-Matéria, Natureza-Graça e Natureza-Liberdade. Dooyeweerd (1984, p.61)[5] explica esses motivos-base como elementos que regulam a percepção da realidade por alguém ou uma comunidade. Este espírito de comunidade opera através de um motivo-base religioso, que dá conteúdo à engrenagem central da inteira atitude de vida e pensamento. No desenvolvimento histórico da sociedade humana, este motivo irá, para ter certeza, receber formasparticulares que são historicamente determinadas. Mas no seu significado religioso central ele transcende todas as formas dadas historicamente. Qualquer tentativa de explicação dele em uma perspectiva puramente histórica, portanto, necessariamente se move em um círculo vicioso. (tradução livre)[6] Na medida em que os filmes trabalham uma redenção, eles apresentam uma perspectiva sobre criação e queda, e, portanto, deixam patente a cosmovisão que os norteia. Esta, segundo Dooyeweerd (1984, p.61), pode ser de obediência, operada pelo Espírito Santo, ou de apostasia, caminhando para a “deificação da criatura”. A presente análise caminha de mãos dadas com as visões acima apresentadas. Está baseada nos pressupostos Teo-referentes, especialmente na tradição calvinista e reformacional de Dooyeweerd, com aproximações de Schaeffer e Godawa. Este último, por seu trabalho específico de análise cinematográfica, será utilizado como marco referencial fundamental. O filme utilizado para análise foi “O Show de Truman”, cujos dados serão oferecidos com maiores detalhes nas páginas que seguem. A escolha da obra se deu tanto pelo gosto do pesquisador, quanto pela percepção de elementos que possibilitam uma análise clara dos pressupostos envolvidos na produção. A inserção cultural nada mais é do que o cumprimento do mandato do Éden. Observar criticamente a cultura, e contribuir para a sua produção, é tarefa do cristão tanto quanto o evangelismo pessoal. Isto confere à presente análise a devida relevância, na medida em que não a considera trabalho “menos religioso”, mas a reconhece em sua integralidade e valor no serviço a Deus e ao Reino. Fonte: www.allenporto.blogspot.com.br Allen Ribeiro Porto [email protected] ________________________ [1] Segundo a proposta de Schaeffer (2002, p.25) a ordem é: filosofia – arte – música – cultura geral – teologia. [2] Grifos do autor. [3] Grifo do autor. [4] Outras designações para esta corrente são: Neocalvinismo, neocalvinismo holandês e Escola de Amsterdã. Mais específicos, porém relacionados a esta tradição, são os termos: Filosofia da Idéia de Lei, ou Filosofia Cosmonômica, fundada por Dooyeweerd. [5] No documento em PDF oferecido pelo Reformational Publishing Project, o trecho mencionado está na página 725. [6] This spirit of community works through a religous ground-motive, which gives contents to the central mainspring of the entire attitude of life and thought. In the historical development of human society, this motive will, to be sure, receive particular forms which are historically determined. But in its central religious meaning it transcends all historical form-giving. Análise crítica teo-referente do filme “Batman: o cavaleiro das trevas ressurge”.
Por : Francisco Macena da Costa.[1] Introdução “Batman: o cavaleiro das trevas ressurge”, é terceiro filme que conclui a trilogia mais recente sobre um dos heróis mais conhecidos das últimas décadas. Os filmes anteriores foram “Batman Begins” e o “Batman: o cavaleiro das trevas”. Produzido em 2012, aclamado pela crítica, confirmado como sucesso de bilheteria, o Batman de Nolan é um típico exemplo pós-moderno da necessidade de se buscar algum nível de teorização das questões que permeiam a existência humana, tais como fé, esperança e amor. Na avaliação de Bernardo Brum, “O homem-morcego tornava-se um personagem mais complexo, em um universo onde eram abordadas questões como formação de personalidade, a identidade humana e a criação de máscaras, literais ou não, usadas para lidar com o mundo. Tais questões alcançariam um novo patamar com Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), que nos desafiava a refletir sobre modos de percepção do mundo e sobre o peso das escolhas.”[2] De fato, o Batman da trilogia de Nolan, muito mais que reboot, é uma representação, ou melhor, uma manifestação cultural que reproduz e retroalimenta uma matriz de pensamento que transcende limites nacionais que efetivamente se manifesta no presente zeitgeist. Como imagem e representação de ideais pontualmente pós-modernos, o Batman, como o cavaleiro das trevas que ressurge, deve ser analisado como uma produção que reflete o substrato religioso (ainda que subterrâneo) de uma sociedade que almeja superar dilemas existenciais e estruturais a partir propostas emancipatórias de Deus e sua Palavra.
Rapidamente a cena muda para apresentação de Bane, um dos principais vilões, que junto com Miranda Tate representam os ideais revolucionários da liga das sombras, sobretudo o ideal de justiça como equilíbrio. Bane aparece pela primeira vez numa missão que tinha como meta raptar o Dr. Pavel, físico nuclear, que estava sob proteção da CIA. Perguntado pelo agente da CIA, sobre a identidade do grupo de mercenários, Bane respondeu da seguinte maneira: “Não importa quem somos. O que importa é nosso plano.”[3] Bane representa o poder da crença. Bane acreditava que era o acerto de contas de Gotham, ou melhor, um mal necessário. Nolan apresenta várias tomadas apresentado vistas panorâmicas da cidade de Gothan retratando assim a vida urbana por entre prédios e carros onde as pessoas seguem com suas vidas experienciando a relativa paz resultante da lei Dent. Na trama de Nolan, a lei Dent é um símbolo do uso da estrutura jurídica contra o crime organizado. No dia em que a cidade de Gothan celebrava a memória de Dent foi introduzida a questão decisiva da verdade. O prefeito da cidade pede para Jim Gordon fale a verdade sobre Dent. Em sua fala, o comissário Gordon disse: “A verdade? Eu escrevi um discurso contando a verdade sobre Harvey Dent. Talvez não seja o momento certo.”[4] Em lugar da verdade, as pessoas deveriam apenas manter sua atenção no resultado da Lei Dent. Nolan através desses breves diálogos introduziu a questão da verdade e a questão do resultado pragmático emanado de uma ética de mal menor, que decidiu eleger um homem dividido entre a sanidade e a loucura, como um exemplo moral socialmente compartilhado. Outro tema recorrente para Nolan é o da salvação do mundo. O assunto é introduzido num diálogo entre Miranda Tate e John Daggett. Após uma frustrada tentativa de falar com Bruce Wayne, o empresário John pergunta para Miranda: “Por que perde tempo tentando falar com um homem que jogou seu dinheiro num projeto falido para salvar o mundo? Ele não vai dar lucro. Eu vou”[5]. Em sua resposta, Miranda disse: “Eu podia explicar que num projeto para melhorar o mundo vale a pena investir (…). Mas só entende dinheiro e do poder que acha que ele compra”[6]. Logo, a salvação do mundo também se manifesta na esperança de um futuro sustentável através do uso de um reator nuclear – fonte de energia limpa. A redenção da humanidade também foi identificada com um senso de preservação da inocência. Contudo, o principal ideal de redenção no Batman de Nolan é a busca pelo referencial ético capaz de transcender a raiva, as injustiças e o ódio. Podemos notar esse aspecto ético no momento em que Batman e Selina entabulam o seguinte diálogo: “Temos 45 minutos para salvar a cidade (Batman). Não, tenho 45 minutos para sair do raio de destruição. Você não tem a menor chance contra esses caras. (Selina). Com sua ajuda eu tenho (Batman). Vou abrir o túnel e vou me mandar (Selina). Você vai além disso (Batman).”[7] Nolam, além de sobrevoar a cidade de Gotham, também entrou em seus subterrâneos para descrever aspectos profundos da vida urbana adoecida com a falta de emprego, a exclusão de jovens em condição de risco e o ceticismo quanto aos ídolos de felicidade e segurança pregados na cidade. Embaixo dos esgotos da cidade, nos subterrâneos da urbe, pessoas tentam sobreviver em condições desumanas. E é exatamente no imaginário dos excluídos, sobretudo as crianças, que a imagem e representação do Batman surge como um faixo de luz que inspira dias melhores. No subterrâneo de Gotham além da pobreza, os criminosos encontraram uma forma de viver e executar seus planos de subversão da ordem vigente. Nolan se apropria de uma linguagem simbólica onde ele apresenta a urbe expressando um sistema vida em sua superfície com projeções de oportunidade e riqueza, enquanto que em seu subterrâneo se escode a miséria e a criminalidade. Um dos objetivos principais de Bruce era através do Batman inspirar a bondade nas pessoas. Na trilogia de Nolan a concretização do bem, através do símbolo do homem morcego é geralmente alcançada entre as crianças. Contudo, o ponto alto no processo de inspiração do bem se dá no personagem do policial John Blake. O policial Blake foi uma criança marcada pela dor da morte e o ódio desde cedo. Órfão ainda pequeno teve que experimentar sentimentos de revolta, rejeição e culpa. Na sua principal fala, o policial Blake, tentando convencer Bruce a ser novamente o Batman, disse: “Descobri tarde demais. Você tem que esconder a raiva. Treinar sorrisos no espelho. É como pôr uma máscara. Então, um dia, você apareceu num carro bacana. Com uma bela mulher do lado. Ficamos tão empolgados. Bruce Wayne, órfão bilionário. Nós inventávamos histórias sobre você. Lendas. Para as outras crianças eram apenas histórias, mas assim que o vi, eu soube quem você era. Eu tinha visto aquela expressão no seu rosto. Era igual à que eu tinha treinado. (…) Eu ainda acredito no Batman, mesmo que você não acredite.”[8] A volta do Batman é um tema que surge em duas ondas. A primeira se dá com aprofundamento da crise das estruturas sociais de Gotham e com a iminente revolução liderada por Bane. O outro retorno se dá quando Bruce consegue saltar o medo da morte (medo do “nada”) e ressurgir do poço. No primeiro momento de clamor pela volta do Batman o principal elemento destacada foi à necessidade diante do mal iminente. Nas palavras do comissário de policia Jim Gordon: “Nós vencemos com base em uma mentira. E agora o mal ressurge onde tentamos enterrá-lo. O Batman tem que voltar. (…) Ele precisa existir.”[9] Nolan insiste através dos diálogos sobre a necessidade de heróis que sejam capazes de inspirar o bem nas pessoas, mesmo diante da falta de sentido. A personagem de Selina Kyle insere o tema do anseio em romper com um mundo de crimes, ainda que eles possam ser justificados pelo espírito do tempo. Na trama, ela anseia pelo programa ficha limpa. Em um dos diálogos com Bruce, a personagem Selina disse: “Não há recomeço no mundo de hoje. Qualquer adolescente com um celular descobre o que fez. Tudo que fazemos é registrado e usado contra nós. (…) Pego o que preciso de quem tem sobrando. Não me aproveito de quem tem pouco. (…) Acha que tudo isso vai durar? Vem tempestade por aí Sr. Wayne. É bom você e seus amigos se prepararem. Quando ela chegar vão se perguntar como pensaram que podiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós.”[10] Nolan também explora todo um campo de significado que agrega sentimentos de sofrimento, medo e esperança quando as pessoas são jogadas no fundo do poço. Através da simbologia do poço, Nolan apresenta a constituição existencial daquele do tipo de homem que consegue transcender aos sofrimentos. A esperança é tema agregado às dinâmicas do poço como algo francamente oposto ao desespero. Entretanto para Bane a esperança era como um veneno para alma. O fundo do poço é a cemitério da esperança. Não existe bondade no fundo do poço. Na experiência Bruce, o poço não foi capaz de fazê-lo esquecer do amor de seu pai que imprimiu numa das camadas mais profundas de sua cosmovisão que o ser humano cai para aprender a levantar. Foi no fundo do poço que Bruce, também aprendeu, que o instinto mais poderoso do espirito é o medo da morte. O filme também retrata a crise de algumas estruturas e pessoas. Faz-se menção do momento crítico quando as estruturas fracassam, quando regras se transformam em correntes e já não servem para deter a maldade. Também é crítico o momento quando a verdade não é suficiente. Depositam-se todas as fichas não que é certo, mas no que dá certo. Nas horas críticas, onde falta referenciais de verdade, a humanidade precisa de heróis, mesmo que sejam lendários. O que realmente importa é que eles funcionem no processo de inspiração da bondade. Batman é o símbolo do ideal confiança no homem. A cidade será melhor quando as pessoas forem inspiradas tomarem parte no bem, ainda que estejam tateando em meios às trevas de uma existência arremessada no mundo. “Nunca quis saber quem você era (Gordon). E estava certo (Batman). Mas as pessoas devem saber que herói as salvou. (Gordon). Um herói pode ser qualquer um. Até um homem fazendo algo simples e reconfortante como botar um casaco nos ombros de um menino para ele saber que o mundo não acabou”. (Batman)[11] No horizonte de redenção da cidade, Nolan descreve uma cidade capaz de superar o mais terrível abismo de ódio através da bondade decisória que coloca as pessoas na direção das coisas úteis, prosperar e bem-aventuradas. A obra de Nolan sobrevoa e pinça substratos fundamentais que permeiam as tentativas de elaboração discursiva, bem como os principais dilemas sociais, políticos e econômicos que juntos formam de maneira constitutiva o retrato de nossa condição histórica.
O segundo elemento bem presente como fator decisivo é a experiência da angústia. Em um dos diálogos, o médico da prisão de Bane disse para Bruce: “Você não teme a morte acha que isso o torna forte! Como correr mais rápido que o possível? Lutar mais que o possível? Sem o maior dos instintos, o medo da morte!” O tema do medo, ou para ser mais preciso a angústia, é um tópico de grande relevância para o existencialismo, sobretudo em Heidegger. No existencialismo dele “nossos estados afetivos – medo, alegria, aborrecimento e angústia, especialmente a angústia por nossa finitude, que nos sobrevém acima de tudo com nossa constante, embora reprimida, consciência de morte – são “existentialia” cruciais.”[14] Herman Dooyeweerd percebeu com precisão que para o existencialista a morte temida não é simplesmente biológica, antes é todo peso do “nada”. “Para alcançar uma existência pessoal, apropriada a si, o homem deveria francamente, e por antecipação, confortar-se com a morte como nada que limita sua liberdade. Ele deveria reconhecer que a sua liberdade é uma liberdade em direção à morte, terminando no sombrio nada.”[15] E por fim a bondade é apresentada como um ato heroico. A coragem do Batman para fazer o bem é atualização daquilo Nietzsche expressou em seu tempo: “Este é o meu bem, o que amo; só assim me agrada inteiramente; só assim é quero o bem. Não o quero como um mandamento de um Deus, nem como uma lei e uma necessidade humana; não de ser para mim um guia para terras superiores e paraísos.”[16] Não existe qualquer sentido, ou elemento metafisico por detrás do bem ou mal. Se uma pessoa é má isto se deve aos dramas que elas passaram na vida. Se uma pessoa se torna boa é porque ela corajosamente se volta para bem como uma decisão individual. Assumir a ética é um ato heroico de coragem e ansiedade. Sproul comenta que de acordo com Sartre, a ansiedade da liberdade “é exacerbada pelo fato de que cada pessoa tem que ir em frente ser ter certeza que está no caminho certo.”[17]
Quando Mirante Tate se revelou como filha de Ra’s Al Ghul, ela disse: “Inocente é uma palavra forte para se usar em Gotham”[19] O que Miranda queria dizer é todos os habitantes de Gotham eram igualmente responsável diante da corrupção da cidade e portanto eram merecedores do castigo. Responsabilidade é uma expressão que foi apropriada na pós-modernidade para representar a culpa. Mas, Miranda está certa quando expressa que não existem inocentes. Diante de um alto padrão de justiça não sobrará ninguém de pé. Além do mais, a cidade pode ser um ídolo do coração e espaço fértil para criação de ilusões compartilhadas tais como “liberdade sem controle, felicidade à mão, prazer sem coerção, riqueza fácil etc.”[20] De fato “inocente” é uma palavra forte para se usar na urbe tendo em vista o compartilhamento de ídolos da cidade e sobretudo porque diante de Deus não um justo, nem um sequer (Rm 3.9-18).
Buscando apenas o recorte da estória de Bruce Wayne vemos como sua visão de mundo foi profundamente influenciada pelo exemplo dos pais eram filantropos, e que lutavam pela redução da miséria em Gotham. A visão de mundo do Wayne também foi influenciada por suas viagens, por seus estudos das ciências aplicadas, pelas pessoas que ele amava como Rachel e Alfred, e até mesmo seus inimigos. Wayne era filho do seu tempo. Ele recebeu e restitui ao seu tempo numa dialética constante. Num mundo secularizado como o de Bruce Wayne as antenas que captam os desejos do ídolo maior, o “eu”, e através da estrutura de plausibilidade encaminham o compartilhamento de sentimentos, atitudes e valores que apenas alimentam o processo de emancipação apóstata. Como igreja de Cristo em tempos de secularização, somos chamados para termos uma autoconsciência acerca das estruturas do coração, e das relações psicossociais, a fim de vermos que o papel da família é de suma importância. Como igreja devemos resistir aos processos de secularização direcionado os corações para Cristo e desafiando as famílias a filtrarem com a lente da palavra as ideias, valores e sentimentos que são compartilhados através das manifestações culturais, procurando em todo tempo depurá-los e resignificá-los. Os processos de compartilhamentos precisam ser orientados por princípios bíblicos. Aplicando o esquema criação-queda-redenção ao filme vemos em linhas gerais um esquema ateísta de mundo. No Batman prevalece uma visão de mundo onde a realidade existe (criação). O mal existe porque as pessoas não sabem lidar com aquilo que não conhecem, logo a existência do mal é uma questão de ignorância (queda). A única saída é lutar por um ideal ético relativo e situado. Significa que “tomamos consciência de nossos atos, adquirimos o poder de fazer o correto em vez que do é aceitável, pois agimos com responsabilidade”[23] (redenção). A partir de uma lente biblicamente orientada reconhecemos que a realidade foi criada por Deus (criação), contudo o homem tomou dos bens recebidos de Deus e pecou, errando o alvo (queda). A única esperança para o homem caído é ação de Deus em Cristo na lente mais profunda do coração humano para que restaurado o homem seja habilitado a crer e amar o Senhor (redenção). Na evangelização do homem pós-moderno o esquema criação-queda-redenção é fundamental, pois como se vê, no Batman ele luta desesperadamente por uma ética altamente pragmática e relativa, e totalmente centrada no homem. Nós cristãos entendemos a moral através da doutrina da imagem e semelhança com Deus. A partir do fato que fomos criados a imagem e semelhança de Deus encontramos a base para desenvolver uma moralidade consistente através do substrato da “cosmovisão cristã [que] proporciona base firme para os mais elevados ideias humanos.”[24] Conclusão. Num ato de coragem para crer naquilo que é certo, a sociedade secularizada cria mitos e ídolos subsidiários com o fim apresentar imagens e representações que sirvam de alivio imediato às consciências caídas que retroalimentam idolatrias coletivas no afã de obterem paz, felicidade e realização. Francis Shaeffer falava de um tempo quando, “Uma elite, um autoritarismo como tal, acabará moldando a sociedade gradualmente, até que chegue à forma desejada, evitando que ela recaia no caos. E a maioria das pessoas acabará se rendendo a isso – movida pelo desejo de paz pessoal e prosperidade; pela apatia, pela busca de uma ordem capaz de garantir o funcionamento de algum sistema político, de negócios e de assuntos ligados à vida cotidiana.”[25] Estamos vivendo este tempo apontado por Shaeffer. Como cristãos, temos o desafio de contribuir ativamente no processo de desenvolvimento e compartilhamento de uma cosmovisão biblicamente orientada. Embora a sociedade empurre a religião para esfera privada, é nosso dever como cristãos desenvolver uma autoconsciência discursiva que nos possibilite apresentar e justificar a fé cristã no mundo como único meio para a redenção do ser humana, das famílias, da cidade e da cultura. [1] O autor é ministro presbiteriano, professor de teologia sistemática na Escola Teológica Charles Spurgeon. Bacharel em teologia pelo Seminário Teológico de Fortaleza da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, em Fortaleza, Ceará, Brasil. [2] http://www.cineplayers.com/critica/batman-o-cavaleiro-das-trevas-ressurge/2449 Acesso em: 4 de janeiro de 2014. [3] BATMAN cavaleiro das trevas ressurge. Direção: Christopher Nolan. Produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Thomas Tull. Los Angeles: Warner Bros. Entertainment, 2012, DVD 1 (165 min). [4] Ibid. [5] Ibid. [6] Ibid. [7] Ibid. [8] Ibid. [9] Ibid. [10] Ibid. [11] Ibid. [12] TOURNIER, Paul. Mitos e neuroses: desarmonia da vida moderna. São Paulo: ABU; Viçosa: Ultimato, 2002. p. 21 [13] SHAEFFER, Francis. A morte da razão. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 60 [14] DIORGENES, Allen. SPRINGSTED, Eric O. Filosofia para Entender Teologia. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010. p. 290 [15] DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 246 [16] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martins Claret, 1999. p. 45 [17] SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. São Paulo: Vida Nova, 2002. p. 174 [18] WOLTERS, Albert M. Criação restaurada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 69 [19] BATMAN cavaleiro das trevas ressurge. [20] LIBANIO, João Batista. As lógicas da cidade: O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Loyola, 2001. p. 71 [21] WALSH, Brian, MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 55 [22] VAN TIL, Henry R. O conceito calvinista de cultura. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 240 [23] PERCY, Allan. Kafka para sobrecarregados. Rio de Janeiro: Sextante, 2012. p. 30 [24] PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2012. p. 125 [25] SCHAEFFER, Francis. Como viveremos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 181 Fonte: www.revmacena.wordpress.com A criatividade é intrinsica à nossa humanidade. Deus comissiona o homem para a criatividade, sendo ele um Deus criativo. Mas esta verdade está longe de ser apreciada nos círculos evangélicos de nossos tempos, em que quase tudo é feito às pressas, em tempo recorde e sem um verdadeiro planejamento ou busca de tom criativo nelas. Nós nos esquecemos de que a busca pela excelência também é uma das maneiras de louvar a Deus.
Para me assegurar do que estou dizendo, basta olharmos para as composições do mundo gospel, para as estruturas dos nossos templos, para o design dos nossos cultos, para a forma da nossa liturgia. Tudo isso reflete a falta de criatividade, atribuída em nome da simplicidade que empregamos em tudo que fazemos. Ora, creio que não é bem assim: simplicidade não significa falta de criatividade. Simplicidade seria a mais criativa forma de apresentarmos o amor do Criador ao mundo, de modo que quem estiver ao nosso redor perceba a grandeza daquilo que queremos transmitir. Vale aqui lembrar as palavras de Schaeffer, que ecoam de forma intensa em meu coração: “O cristão é alguém cuja imaginativo deve voar além das estrelas”. Schaeffer nos dá a entender com isso que a criatividade do cristão não tem limites, pois ela tem como alvo as profundezas da glória de Deus - e glória é a aquilo que ser humano nenhum consegue descrever de maneira real, a não ser pelo imaginativo. Deixe-me aqui definir de maneira clara o que é o imaginativo antes de prosseguir com nossa reflexão, pois por meio desta definição estaremos em condições de fazer um contraponto com a realidade que vivemos e avaliar se o que fazemos é ou não criatividade. Segundo C.S.Lewis, o imaginativo é algo criado pela mente humana em sua tentativa de responder a algo maior do que ela mesma. Em contrapartida, o imaginário é algo que foi criado falsamente, sem contrapartida com a realidade. Feito isto, é nítido notarmos que vivemos em mundo imaginário, onde a criatividade é limitada e extraída de uma mente dominada pelo pecado, cujas imagens são distorcidas e não conseguem um pleno acesso ao divino, de tal modo a trazer uma imagem viva e de maneira aproximada, tentar fazer a descrição do belo de Deus, da sua glória e da sua verdadeira essência. Logo, Cristo é a fonte pelo qual temos acesso ao imaginativo. Sem Ele, tudo é apenas uma mera imaginação. Ora, é notória nossa sensação de maravilhamento diante da visão do imaginativo empregado nas escrituras sagradas, onde os profetas e apóstolos eram levados a contemplar a gloria de Javé; como Isaias, Jeremias, Ezequiel e João não conseguiram descrever o que viam e de maneira imaginativa nos trazem as ilustrações das criaturas celestiais - ora magnificas, ora monstruosas , de suas deslumbrantes e assombrosas visões do Deus Augustus. Assim como Paulo, que de tão real a visão da glória não conseguia diferenciar se sua experiência de êxtase fora no corpo ou fora do corpo. Ahhh!! Isso é o imaginativo! Percebe-se que quando lemos e cantamos as orações dos salmos nossos corações vibram e nossas entranhas estremecem porque elas representam a perfeita criatividade do imaginativo, da real visão divina, onde o ser humano é elevado e ao mesmo tempo convidado a se prostrar diante do Divino sem palavras e é convidado a adorar e a contemplar aquele é santo e belo. Precisamos viver no imaginativo e não no imaginário, porque o imaginativo é intenso, ao passo que o imaginário estagnado. A arte do imaginativo é a mais bela e exata expressão da essência de Deus, pois ela revela a verdade e o verdadeiro ser do divino. Assim como Schaeffer lembrou-nos que Jesus é o pai da beleza e da criatividade. Portanto, a primeira razão para valorizarmos a criatividade é que Deus é o Criador. Em segundo lugar, uma obra de arte tem valor como criação porque o homem é feito à imagem de Deus e, portanto, pode não apenas amar, pensar e sentir emoções - ele tem também a capacidade de criar. Tendo sido feitos à imagem do Criador, somos chamados à criatividade. Tomás Fernando Camba é amante de filosofia e orador. Trabalha na igreja Batista do Morumbi, onde atua na área de Ensino. |
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